Capítulo 2:
A Disfarçada Benção de Flum
O comerciante de escravos levantou Flum pelo seu cabelo
marrom avermelhado e deu chute após chute no estômago. “Miserável inútil! Você
sabe quanto de dinheiro você me fez perder?! Por que... maldita... anã...!!”
Flum ofegou e ofegou quando a ponta do sapato do homem acertou.
Um rastro de baba saiu pelo canto da boca e desceu pelo seu queixo. Uma gota
caiu sobre o sapato do homem, o que só provocou uma nova explosão de violência.
“O que você esta fazendo atuando como a vitima disso
tudo?! É culpa sua por ser tão inútil que ninguém quer te comprar!”
O estalo abafado das botas ao chocar com a carne seguiu
ressoando por toda a habitação.
Quando o famoso herói Jean Inteige aproximou-se pela
primeira vez para lhe dizer que tinha uma garota para vender, o comerciante
quase se ajoelhou para agradecer aso céus nesse mesmo momento. Obviamente,
obrigar uma garota inocente à escravidão era contra a lei, e para piorar as
coisas, ela era um dos heróis escolhidos para derrotar o Lorde Demônio! Mas
isso também implicava que a alma
desafortunada possuía algumas estatísticas bastantes impressionantes...
estatísticas que seriam vendidas por uma margem muito boa no mercado aberto.
Inclusive o próprio Jean havia dito que “a recompensa vale a pena o risco, eu
te asseguro”.
E assim, o comerciante fez sua devida diligência e
cumpriu sua parte do acordo. Evitou fazer perguntas; não porque estivesse sendo
cortês, per se, mas porque Jean lhe
deu a impressão de que não devia ser feito. Em retrospecto, isso havia sido um
claro sinal de que algo estava errado. Jean havia sido muito reservado com a
informação e nem sequer havia tentado pechinchar mais dinheiro.
Como pude ser tão estupido?
A primeira vez que o comerciante começou a se preocupar
foi quando viu como Jean arrastava Flum e como a desprezava. “Inútil”, ele
disse para ela. Bem na frente do homem que esperava comprar essa garota a um
preço exorbitante. Mas estava lidando com um lendário herói... inclusive um
sábio! E por isso o comerciante havia aceitado ser termos sem reclamar.
Foi somente depois de completar a transição e sair que o
homem finalmente decidiu verificar as estatísticas de Flum. Felizmente, isso
foi alcançado facilmente com o feitiço Escanear, magia simples que qualquer um
poderia usar, independentemente de sua afinidade.
Flum
Apricot
Afinidade: Reversão
Força: 0
Magia: 0
Resistência: 0
Agilidade: 0
Percepção: 0
Quando
ficou evidente que as estatísticas de Flum eram todas zero, o sangue
desapareceu do rosto do comerciante. E nesse momento, claro, Jean já havia ido.
Em
circunstâncias normais, sempre usaria Escanear antes de realizar uma compra.
Agora, se deu conta de que Jean provavelmente haveria cancelado o acordo ali
mesmo se houvesse tentado usar Escanear em qualquer momento da transação.
Tudo
se resumia nisso: o havia enganado. Jean havia visto através dele.
Aproximadamente
uma semana havia passado desde que o comerciante havia se separado tão
facilmente de uma grande quantia de dinheiro para que lhe impusessem essa
garota. Não importava o amargor que tivesse por todo o assunto, não era como se
pudesse devolve-la, e considerando que a haviam comprado no mercado negro, uma
garota com estatísticas que eram todas zero era praticamente impossível de
vender.
Mas
isso estava a ponto de mudar.
O
comerciante agarrou Flum pela gola da camisa surrada e a arrastou pelo corredor
de pedra, o áspero solo raspando na pele a medida que avançavam.
“Ay...
ayyyyy...”
Ela
não levantou muitas objeções a este grau de dor. Também não tinha a energia
mental para tentar imaginar para onde a levavam agora. Não ia ser agradável,
disso ela sabia. Poderia ser vendida a outra pessoa, ou talvez inclusive
assassinada... de qualquer forma, seu futuro era sombrio. No momento em que a
marcaram como escrava, Flum soube que nunca voltaria para casa.
A
principio ela havia chorado, mas nesse ponto, Flum havia se rendido. Nem sequer
lutou quando o comerciante a arrastou por um lance de escadas, só deixou
escapar pequenos gritos de dor quando suas pernas ou coxas se chocavam contra o
degrau inferior. Uma vez no porão, o comerciante abriu uma jaula e a jogou
dentro antes de fechar rapidamente a porta atrás dela.
Flum
bateu no chão com um estalo abafado e caiu no chão frio. “Nnnng...”
Ela
se levantou e olhou ao redor da jaula. Viu a outros quatro escravos ali com
ela, seus olhos apagados confirmando que todos haviam aceitado sua morte
iminente. Parecia que ninguém se incomodava em alimentar essas pessoas, já que
todos pareciam doentes e frágeis.
A
jaula também estava suja, embora fosse esperado. Cheirava absolutamente ruim, o
que fez com que o nariz de Flum se enrugasse instintivamente. Em um dos cantos
havia uma mulher rodeada de suas próprias fezes e urina. Um estranho sorriso
pairava no seu rosto. Seu coração ainda batia, mas por dentro, já estava morta.
De
repente, escutou o comerciante falar de onde ele estava sentado em uma cadeira
do lado de fora da cela.
“Bem,
aqui esta enchendo rapidamente. Suponho que já é hora.”
Estava
claro que algo estava a ponto de começar, mas nenhum dos mortos vivos da cela
parecia mostrar interesse no era esse algo. O homem levantou da sua cadeira e
afastou para começar com os preparativos. Por enquanto, o único som no porão
era a respiração dos escravos.
Flum
se arrastou para o fundo da habitação e apoio sua costas contra a parede.
Enquanto lentamente começava a controlar sua respiração e observava o que a
rodeava, seu olhou pousou em uma figura de aspecto estranho, com o corpo
coberto de bandagens.
Pensou
em fazer uma pequena conversa para passar o tempo. “Quanto... quanto tempo você
está aqui?”
A
figura se virou lentamente para Flum. Quando finalmente falou, foi para dizer:
“Me trouxeram aqui faz três dias.”
Flum
não havia se dado conta de que era uma garotinha até que a escutou falar.
Estava tão magra que os contornos dos ossos eram visíveis logo abaixo da pele,
e a bandagem envolta ao redor do seu rosto escurecia suas feições. Seu cabelo
cinza claro tocava nos ombros; Flum pensou que inclusive poderia ser prateado
se o lavasse bem. O comprimento do seu cabelo por si só poderia ter inclusive
revelado seu gênero, mas estava rasgado, como se houvessem cortado com força
com uma faca oxidada.
A
roupa da garota estava suja, a pele manchada de sujeira e levava consigo um cheiro ligeiramente áspero e penetrante.
E, no entanto, havia algo na forma em que olhou para os olhos de Flum que a
deixou sem ar. Seus olhos eram absolutamente lindos. Flum não pôde se obrigar a
desviar o olhar.
Nesses
olhos, viu uma linda feminilidade e um olhar de pura inocência. Se o destino a
houvesse tratada de maneira diferente, Flum estava segura de que essa garota
levaria uma vida verdadeiramente feliz. Ela podia dizer isso só ao olhar seus
bonitos olhos, um contraste gritante com a repugnante masmorra na que se
encontravam.
“Umm... Então... uhh... Suponho que todos os que estão
aqui vão ser assassinados?”
“Não sei, mas o amo disse que ia se desfazer de todos
nós.”
“O amo?”
“O homem de antes. Ninguém me comprará, então isso o
torna meu amo.”
“Oh, entendo...”
Flum se deu conta que ela e essa outra mulher haviam
vivido vidas completamente diferentes. Parecia que havia sido escrava desde
muito jovem e estava acostumada com isso.
Depois de inspecionar mais de perto, Flum notou que parte
da pele abaixo das bandagens da menina estava vermelha e inflamada.
Estremeceu-se ao pensar no castigo que a outra mulher havia recebido nas mãos
do suposto amo.
Flum não tinha vontade de continuar sua conversa com a
figura vendada, embora estivesse surpreendida do quão jovem parecia ser a outra
garota. Enquanto deixava que o silêncio os envolvesse, notou que a garota a
olhava fixamente por mais um tempo antes de finalmente voltar o olhar para o
chão.
As duas se sentaram ali, abraçando suas pernas contra
seus peitos em busca de calor, olhando distraídos para o chão cinza. Flum viu
alguns insetos que nunca antes havia visto se retorcerem ao redor da cela nas
suas incontáveis patas. Em outras circunstâncias, a visão a perturbaria e
haveria tentado se afastar o mais longe possível, mas agora olhava fixamente.
Depois de um tempo indeterminado, escutou o som de passos
que se aproximavam. Olhando para cima, viu o comerciante que estava do outro
lado das barras. Deixou uma pequena cadeira em frente a cela e se sentou,
cruzando uma perna sobre a outra.
“Bem, bem, bem. Provavelmente já sabem, mas agora mesmo
estão todos sentados em um monte de lixo. Não tem nenhum valor no mercado,
e não poço investir dinheiro para cuidar
de pedaços de carne sem valor, então vou ter que acabar com vocês. No
entanto...”
O comerciante sorriu.
“Em primeiro lugar gastei dinheiro os adquirindo e depois
desperdicei ainda mais para lhes manter com vida. No mínimo, eu mereço me
divertir um pouco com suas mortes, não?”
Ninguém respondeu. Embora não parecia haver esperado que
o fizessem, o comerciante ainda estalou a língua incomodado pelo silencio. Logo
se pôs de pé e se afastou, desaparecendo na escuridão.
Embora Flum não pudesse ver de onde estava sentada,
aparentemente havia uma alça de algum tipo pregada na parede à frente deles.
Podia escutar o metal raspando quando o homem o empurrava com ambas as mãos. A
pedra raspava contra a pedra enquanto o teto rangia sobre eles, seixos e poeira
choviam nos ocupantes da cela.
Flum voltou os olhos lentamente para a fonte do som
quando três objetos em forma humana caíram através do buraco recém-aberto no
teto e bateram no chão com um estalo abafado.
Na verdade, não tinha forma humana. Haviam sido humanos,
uma vez. Quando estavam vivos.
O sangue e outros fluidos escoava dos cadáveres
retorcidos, enchendo a habitação com um fedor terrivelmente podre. Os insetos
inicialmente se surpreenderam pelo barulho alto, mas agora correram famintos
até os recém chegados.
O comerciante apareceu mais uma vez em frente a cela com
um sorriso orgulhoso no rosto. “Já descobriram? Esses são ghouls. Quando um
cadáver fica tempo demais exposto à magia, começam a se mover totalmente por
sua conta e se convertem em monstros Rank F.”
Enquanto falava, os ghouls emitiram sons grotescos de
gorgolejo e sucção. Estremeceram-se e ganharam vida, girando a cabeça em busca
de uma presa. Os gemidos que escapavam de suas gargantas meio podres eram de
outro mundo.
Flum havia se encontrado antes com ghouls em sua viajem.
Como disse o homem, esses eram monstros Rank F de baixo nível. Eram lentos e
frágeis devido a sua carne podre.
“Te direi que... se conseguir fazer dano para estes
ghouls, então voltarei a te colocar a venda e te deixarei viver um pouco mais. Mas
tenha cuidado. Esses caras não são presas fáceis.”
Muitos aventureiros novatos cometeram o erro de baixar a
guarda diante os ghouls de Rank F, só para serem assassinados por uma poderosa
mordida no pescoço. Uma pessoa normal sem experiência em combate não tinha
nenhuma possibilidade contra esses monstros, especialmente equipados com nada
mais que suas próprias mãos.
“Bem, parece que já tiveram um bom começo!”
Os ghouls correram até a mulher coberta de fezes que
estava sentada num canto, impulsionado pela fome pura e o desejo de substituir
sua carne podre com a dos vivos. Abriram bem a boca, expondo seus dentes
amarelos e espirrando baba no chão. A mulher nem sequer gritou. Ela
simplesmente se sentou ali e olhou fixamente para os monstros que estavam vindo
para rasgar sua carne.
Um a agarrou na coxa, outro no ombro e o terceiro a
mordeu na bochecha. Os ghouls mastigaram descuidadamente enquanto rasgavam a
carne da mulher. Depois de um curto tempo, seu corpo começou a convulsionar e um liquido rosa borbulhou nos
cantos da sua boca. Com um ultimo puxão, sua cabeça se inclinou para o lado e
seu corpo deixou de se mover.
E, no entanto, havia algo de paz no seu rosto. Como se
finalmente houvesse se livrado de toda a dor e do sofrimento que suportou
vivendo nesse mundo.
No entanto, os ghouls estavam longe de estar satisfeitos.
Ao presenciar o assassinato da mulher diante deles, Flum
e os demais na cela se deram conta de que não estavam dispostos a deixarem
serem mortos, Ao menos ainda não. A garota vendado com a que Flum havia falado
antes se movia fracamente, como se lutasse com a ideia da morte iminente.
Um amplo sorriso enfeitou o rosto do comerciante. Parecia
disfrutar do medo que se estendia entre os ocupantes sobreviventes da cela.
“Será melhor que façam algo rápido, ou serão os próximos!
Mas não podem derrotar um ghoul com suas próprias mãos, verdade? Oh, uau! Olha
essa parede! Não isso ai uma espada? É muito pesada para qualquer um de vocês,
mas quero dizer, quem sabe. Talvez é uma arma de classe épica e possui algo de
magia!”
Claro, todos sabiam que era uma armadilha. Mas, que opção
tinham se queriam viver? O único homem na cela correu imediatamente até a
espada e agarrou a empunhadura. Infelizmente, a enorme arma de aço era muito
pesada para seus frágeis braços. Sua ponto bateu no solo de pedra com uma chuva
de faíscas e um alto barulho metálico.
O barulho chamou a atenção dos ghouls, que começaram a se
mover até ele. O homem nem sequer podia levantar a espada do solo, e muito
menos lutar contra eles.
“Hah... hah... nnngraaaaw! Não vou morrer aqui! Vou sair
daqui e viverei bem...” Sua voz foi se apagando enquanto continuava lutando,
provocando o riso do comerciante.
“Fico feliz em ver que você tem um pouco de senso comum!
Bom para você. Só por isso, me assegurarei de que não sofra tanto.”
O homem que empunhava a espada de repente começou a
gritar.
“Você... bastardo! Meu corpo, está... Gaaaaugh!!”
Ao olhar mais de perto, Flum notou que a pele das costas
das mãos estava descascando, expondo a carne e os ossos por baixo. E não era só
suas mãos. A carne de todo o seu corpo estava começando a descascar sob suas
roupas. Logo veio o musculo por baixo, que começou a derreter em um liquido
espesso e pegajoso enquanto o corpo do homem cedia de sua forma.
“Gyahahaha!! Oh, que vergonha. Sim, escolheu
corretamente, mas desafortunadamente essa espada esta amaldiçoada. Qualquer um
que a toque terá uma morte espantosa. Essa lâmina negra denuncia um pouco, não?
A obtive de uma maneira parecida com a de Flum. Alguém me disse que era uma
arma de classe épica e me enganaram para que a comprasse. Quando vou aprender.
Bom, para se franco, na verdade é uma arma épica. Buahahaha!”
O comerciante apertou as mãos e riu alto em sádico
deleite.
“Por outro lado, foi muito divertido ver como esse lixo
de espada limpava o outro lixo que havia se acumulado. Suponho que não foi um
desperdício total!”
Enquanto falava, os ghouls se viraram até seu próximo
alvo: a terceira garota na jaula, além de Flum e a garota vendada. A garota agitou
os braços freneticamente, como se tentasse afastá-los.
“Por que eu?? Por favor, se afaste. Por favor, se
mantenham afastados de mim!”
Isso fez que o comerciante risse ainda mais. A garota se
lançou para as barras e se agarrou desesperadamente a elas enquanto enfiava o
rosto na abertura.
“Por favor me salve, eu te imploro! Farei tudo o puder
para me assegurar de que alguém vai me comprar, eu prometo!”
O comerciante respondeu a desesperada garota com um
sorriso caloroso. Se levantou do seu assento e se ajoelhou diante dela,
baixando a cabeça no nível dos olhos. Um raio de esperança começou a brotar no
peito da garota quando viu a expressão no seu rosto. Talvez, só talvez, ainda
havia um pouco de humanidade nesse homem que ganhava a vida comprando e
vendendo outros humanos.
“V-Vai me salvar?”
“Você esta suja.”
O olhar caloroso nunca abandonou o rosto do comerciante
quando puxou uma faca e a apunhalou através do ponto suave na base da sua
garganta.
“Gnng... nnnnnhhggg...”
A lâmina atravessou a base da língua, o nariz e o
cérebro.
“Nossa, isso cheira mal! É difícil de acreditar que outro
humano possa morrer de tal forma. Embora, para ser justo, isso é um insulto
para mim nos colocarmos na mesma categoria. Gahaha!”
O corpo da garota caiu lentamente até o chão, seu rosto
ainda pressionado com força contra as barras, equilibrado sobre o punho da
faca. O comerciante voltou para o seu assento e olhou para a garota morta antes
de soltar outro gargalhada.
O mundo era vasto.
Um vasto domínio, cheio de criaturas repugnantes, que
rodeava o pequeno povoado de Flum. Se apenas tivesse ficado onde estava. Ela
nem queria sair. Escolhida pelo Criador Divino... não, era mais como se tivesse
sido amaldiçoada.
Havia levado uma vida agradável e simples no seu povoado.
Ajudava seus pais no campo todas as manhãs, e depois voltavam para disfrutar
juntos de um almoço quente. Pela tarde, colhiam flores e indo a aventuras nos
bosques próximos, enquanto conversaram de nada em especial enquanto o sol
estava se pondo lentamente. A frágil Flum tinha que tomar descansos regulares
apenas para acompanhar o resto das crianças, mas ninguém zombava dela por isso.
Se estivesse em casa agora, seria hora do jantar. Sua
família iria rir e conversaria ao redor da mesa antes de se preparar para ir
para a cama, sabendo que outro dia como esse os esperaria no amanhecer.
Como sentia saudade desses dias.
Ela nunca quis nada e nunca havia reclamado. Todos a
haviam elogiado por ser uma garota tão boa, inclusiva se não era exatamente a
melhor filha que seus pais poderiam ter esperado.
Afinal, todas as suas estatísticas estavam estancadas no
zero. Mas isso era realmente tão ruim? Cada criança tinha sua própria forma de
fazer a vida difícil para seus pais. Seus pais sempre haviam rido de qualquer
sugestão de que ela pudesse ser um aborrecimento.
Aquilo não estava certo.
Não podia deixar que sua vida acabasse assim, gritando de
miséria enquanto um ghoul a comia viva.
“Não! Não, não! Não quero morrer assim!! Não fiz nada
para merecer isso!!”
Uma explosão de emoções percorreu a mente de Flum... ira,
medo, ódio, terror... enquanto enfrentava os trôpegos corpos de carne podre.
Eles gemeram quando finalmente se deram conta dela e se arrastaram cada vez
mais para perto.
“Não fez nada? Há! Por sua culpa terminei perdendo uma
grande quantia de dinheiro! Agora, morra pelos seus pecados!”
“Nada disso é minha culpa! Eu não faz nada disso com
você!”
A haviam vendido, escravizado e agora estava a ponto de
ser assassinada. E ela devia ser responsabilizada por isso também? Não era
assim que o mundo deveria funcionar. Então, por que era o comerciante que se
safava? Como sua palavra se tornou a lei? Afinal, ela realmente podia acertar?
Se isso era verdade, Flum estava condenada a morrer. Ia
ser destroçada da maneira mais grotesca, reduzida a um monte de carne e ossos
em um canto frio e escuro desse miserável lugar.
Ninguém choraria por ela; não derramariam uma lágrima.
Seus pais nunca saberiam o que havia acontecido. Seu corpo seria lançado em
algum lugar e queimado com os outros lixos, e ninguém lembraria que alguma vez
existiu uma garota chamada Flum.
E ela odiava isso.
“Bem, se odeia tanto a ideia de morrer, por que você não
pega uma arma e luta? Gyahaha!”
Uma arma...
Os olhos de Flum escanearam a habitação e pousaram na
espada deitada no chão. Junto com ela estavam os ossos brancos e a bagunça
pegajosa que uma vez havia sido seu companheiro de cela. Se renda e deixe que
te comam, ou luta e derreta. De qualquer forma ia morrer.
Mas pelo menos com certa honra se caia lutando. Inclusive
se o resultado final fosse igual, preferia morrer desse maneira do que deixar
que esse homem se divertisse com sua rendição.
Flum se obrigou a levantar com um grito. Seu corpo estava
debilitado, tinha fome, e o fato de que havia passado as ultimas horas sendo o
saco de boxe do comerciante também não ajudava. Mesmo caminhando com as pernas
curvadas, ainda tremia com cada passo. Podia ouvir o homem cacarejando além das
barras, mas apertou a mandíbula e se obrigou a avançar passo a passo.
Nesse ritmo, os ghouls provavelmente chegariam nela antes
que ela tivesse a oportunidade de por uma mão sob a espada.
“Nng... aaaah... oooww...!”
No entanto, continuou dizendo a si mesmo que não ia
deixar que tudo terminasse assim.
“... E, no entanto, eu persisti... e persisti... e, ainda
assim, eu persisti!”
De alguma forma, essas palavras a ajudaram a encontra a
força que precisava para superar seus medos e dar o seguinte passo adiante,
seus passos ficaram mais e mais largos com cada passo. Infelizmente não importa
o quão forte seja sua determinação, não se pode escapar da terrível realidade
da sua situação. Antes que se desse conta, um dos ghouls a agarrou no ombro com
sua mão podre.
“Ah!”
O corpo de Flum se retorceu impotente quando o poderoso
ghoul puxou ela até ele e aproximou a cabeça no seu ombro esquerdo, com a boca
aberta e salivando. Um pouco depois, alguns dentes castanhos doentios morderam
sua fina roupa e mergulharam profundamente na sua carne.
“Nnngaaah!”
O sangue se misturou com a saliva espessa e começou a
brotar da sua pele onde o ghoul a havia mordido. O ghoul balançou a cabeça para
frente e para trás, rasgando a carne.
“Gaaaaaaaugh!!”
O rosto de Flum se contorceu de dor quando uma parte do seu
ombro foi arrancada. Ela caiu no chão de pedra.
Mais adiante, viu a espada. Seu braço esquerdo era uma
causa perdida, mas continuou, engatinhando tão rápido quanto suas pernas e seu
braço poderiam a impulsionar.
O comerciante torceu para ela nas laterais. “Você esta
quase conseguindo, só um pouco mais!”
A garota vendada seguiu os movimentos de Flum, seus olhos
frios e sem emoções.
Flum continuou rosnando, sua respiração entrecortada,
enquanto lutava para abrir um caminho através da dor e aproximava cada vez mais
da espada. No entanto, ainda se movia muito lento que antes, e o ghoul estava
sobre ela de novo. Essa vez, foi a suave carne da sua panturrilha que
rapidamente cedeu ao ranger de dentes.
Outro ghoul desceu sobre ela e mordeu a coxa esquerda. O
terceiro e ultimo ghoul fez sua presença conhecida quando começou a roer o
calcanhar.
Agora as pernas de Flum eram inúteis. Todo o que tinha
era seu braço direito.
Um calafrio inundou seu corpo, húmido de suor frio pela
perda massiva de sangue. Seus pulmões lutavam valentemente com cada respiração
para fornecer a ela oxigênio. Só permanecer consciente era uma batalha por si
só. Flum estava preocupada com perder a consciente em qualquer momento pela
dor.
Sua perseverança seria sua salvadora. Seu dedo, a ponta
do seu dedo do meio, tocou a empunhadura da espada. Estirou ainda mais a mão e
conseguiu a agarrar firmemente.
“Eu... consegui.”
E agora ela podia derreter e morrer.
Havia perdido toda a sensação nas suas pernas enquanto os
ghouls continuavam se deleitando com sua carne. Todo abaixo da sua cintura
agora era somente uma mistura de carne, ossos e sangue. Mas, de que importa? De
qualquer forma ia morrer. Pelo menos estava fazendo isso nos seus próprios
termos. Se isso era importante ou não, não conseguia dizer, mas a deixou com
uma estranha sensação de satisfação.
Flum fechou os olhos e sentiu que a dor se dissipava
lentamente. Uma sensação de calor a envolveu e sentiu seu corpo leve.
Então era assim que se sentia ao morrer.
A voz do comerciante interrompeu seus pensamentos. “O
que...?”
Flum não se importava com o que ele tinha para dizer.
Afinal, ela estava morrendo.
“O que está acontecendo?”
Ou pelo menos, pensou que estava.
“O que é isso? Porque suas feridas estão se curando?!”
Ao escutar a confusão na voz do homem, Flum finalmente
decidiu abrir os olhos pela ultima vez.
E então ela viu...
“Eh?”
Os ghouls estavam se afastando de Flum, mantendo uma
distância estranha. Além do mais, a carne que havia sido arrancada das pernas
alguns momentos antes estava de volta onde deveria estar, sem sequer um
arranhão à vista. Inclusive seu ombro foi restaurado.
Flum levou a mão no rosto e abriu e fechou algumas vezes.
Ela beliscou sua bochecha. Doía.
Então não era só sua imaginação ou um sonho cruel. Isso
significava que seu corpo...
Flum se levantou e levantou a espada com uma mão. Não era
leve, de maneira nenhuma, mas também não era particularmente pesada.
Essa frágil garota de alguma forma estava levantando uma
enorme lâmina quase tão alta quanto ela com uma mão.
Não tinha sentido para ela, mas Flum entendeu. Ela não
havia se rendido. Mesmo no momento mais sombrio, se arrastou até o seu alvo e
conseguiu e alcançou o que se propôs a fazer.
“Então... não tenho que morrer?”
“Sim, sim! Não fiz nada de errado! Não há nenhuma razão
pela que devia morrer em um lugar miserável como esse.”
Mais uma vez os ghouls começaram lenta e estranhamente se
aproximar dela. Apesar da sua aparência espantosa, já não inspiravam o mesmo
medo de momentos antes. Flum fechou os olhos e deixou escapar um suspiro para
limpar sua mente. Ela apertou mais o punho, manteve a lâmina pronta e se lançou
até os monstros.
Afinal ela não tinha nada que temer. A lâmina era muito
mais longa que o alcance dos ghouls.
Copiando o que havia visto os membros do seu grupo fazer
no passado, se aproximou até que esteve a uma distância de ataque, baixou sua
espada e...
“Hyaaaaa!!”
Fwok!
Os três ghouls foram todos cortados pela cintura, a
metade superior dos seus corpos cortada de maneira limpa. Flum, com sua
estatística de força de zero se surpreendeu ao vê-los divididos em dois tão
facilmente com um só golpe. Claro, sua carne estava podre, mas isso foi
impressionante. Deve haver algo especial nessa lâmina.
Não que ela realmente se importasse com os detalhes
agora. Ela estava feliz que funcionou. O que realmente importava era escapar
com vida.
Flum se aproximou até a porta da jaula e lançou outro
golpe poderoso com a espada.
Clank!
A pesada lâmina separou facilmente a fechadura e abriu a
porta com um chiado. Ao sair da cela, se encontrou cara a cara com o
comerciante acovardado.
“E-Espera um minuto! Escuta, eu, eh, você pode ir de
graça, de acordo? Então, por favor, me perdoe!”
Esse era o mesmo homem que estava rindo a pouco tempo
atrás enquanto via os escravos morrendo frente a ele. Quão rápido as pessoas
mudam. Ainda assim, Flum se debatia se deveria mata-lo. Nunca antes havia
levantado uma mão com violência e não queria se transformar em uma assassina. E
se o comerciante era uma espécie de figura influente na capital, isso poderia transformar
ela numa criminosa perseguida.
No entanto...
“Haa... Augh?!”
Ela passou a espada diretamente através do seu ombro
direito, separando de forma limpa seu braço direito de seu corpo e fazendo que
ele caísse sem forças no chão. O comerciante levou um tempo para reagir por
causa da rapidez de tudo.
“Aaaaaaguh!!! Meu... meu braço!!”
“Cale-se, velho.”
A seguir,
lhe tirou o braço esquerdo com a lâmina encharcada de sangue. Seus gritos
ressoaram por todo o porão.
“Gryaaaaaaaaugh!!”
Flum
se surpreendeu do quão tranquila se sentiu quando infligiu tal dor a outro ser
humano pela primeira vez. Foi como cortar carne. Na sua mente, o homem já não
era humano.
O
comerciante continuou gritando enquanto Flum lhe cortava a perna esquerda,
relembrando de todas as vezes que haviam chutado ela. Doeu. Muito. Seu torso
estava coberto de contusões e todo o seu corpo doía. A única coisa que a haviam
dado de comer em dias foram pedaços de pão mofado e ela mal conseguiu engolir.
“Aaauugh!
P-Por favor, só pare!”
Sua
perna direito foi a seguinte. Outro corte da lâmina revelou gordura branca no
meio do músculo encharcado de sangue. Ela
podia ver até ver o fêmur espreitando. Ela não sentia nada além de ódio por
esse apêndice que ele havia rapidamente transformado em uma arma, mas uma vez
separado do seu corpo não era nada além de um pedaço de carne.
“Por
favor, por favor, me perdoe...” Sua voz era apenas um pouco mais do que um
sussurro, provavelmente pela perda de sangue. Flum não queria que ele sangrasse
antes que ela terminasse. “Eu te... eu te imploro...”
Swish!
Fwop!
Ela
balançou a espada paralelamente ao solo e diretamente no lado da sua cabeça,
cortando a metade superior da cabeça do homem. O sangue jorrou do seu crânio
cortado como uma fonte, espirrando no roto de Flum enquanto desabava lentamente
até o chão. Uma mistura de sangue e
cérebro se espalhou pelo solo, e um fedor espantoso agora emanava do
homem que uma teve o atrevimento de chamar ela de suja.
Flum
se manteve imperturbável diante da grotesca cena diante dela. Ela não se sentiu
culpada. Na verdade, era muito parecido a quando ela matou os ghouls. Agora que
ela pensava nisso, tudo o que havia feito foi matar a outro monstro que parecia
um humano. Um monstro ainda mais podre que os ghouls.
Ela
sentiu uma crescente sensação de segurança. Ela tinha razão. Ela não estava
louca. Sua visão de mundo acabava de mudar um pouco, graças a terrível
experiência que havia suportado na semana passada.
Pouco
a pouco se deu conta de que não tinha bainha para sua espada. Ela poderia a
manejar com uma mão, mas não podia simplesmente caminhar pela cidade desse
modo.
“O
que fazer...?”
Enquanto
ela refletia, a espada de repente explodiu numa chuva de luz e desapareceu na
palma da sua mão, deixando uma runa vermelha no seu lugar.
“Assim
é... disse que era uma arma de classe épica, como a que Cyrill usava. Ela podia
fazê-la aparecer e desaparecer à vontade...”
Havia
cinco classes de equipamentos: comum, pouco comum, raro, lendário e épico.
Igual às estatísticas de uma pessoa, a classe de um equipamento pode ser
determinado usando Escanear. O portador de um equipamento épico poderia
convoca-lo desde, e envia-lo a, uma espécie de uma dimensão paralela.
Devido
a suas altas estatísticas e o fácil que era o transportar, o equipamento Épico
era ridiculamente caro... não é algo que um comerciante de escravos comum teria
acesso. Como ele disse, provavelmente foi induzido a compra-lo pelo que pensou
ser um roubo, graças ao fato de que estava amaldiçoado.
Independentemente,
Flum se alegrou de não que o levar pela cidade com ela. Com isso fora do
caminho, voltou sua atenção para a jaula e olhou para o único ocupante vivo, a
garota vendada.
Entrou
na jaula e ofereceu uma mão para a jovem.
“Eh?”
A outra garota só inclinou a cabeça confusa. A rapidez de seu movimento fez
suas bandagens rangerem.
“Eh,
nada. Estamos saindo daqui.”
“Mas
por quê?”
“O
comerciante está morto. Já não há razão para estarmos aqui.”
A
jovem olhou fixamente para Flum. Seus olhos eram absolutamente lindos e, no
entanto, estavam completamente desprovidos de qualquer emoção. Era impossível
sequer adivinhar o que estava passando pela sua mente.
“Escuta,
será muito ruim para mim se alguém fica sabendo que eu matei o comerciante, de
acordo? Agora vamos nos apressar!”
Agora
Flum estava ficando sem paciência. Agarrou a mão da garota, a colocou de pé e
logo começou a leva-la para fora.
“Umm...”
“O
que?”
“Você
agora é a minha ama?”
Isso
parou Flum em seu caminho.
“Isso
não era exatamente o que eu estava pensando...”
“Mas
você me tirou desse lugar, não? Você não vai me usar?”
“Usar...?”
“Se
isso não é o que você pretende, então por que me levaria contigo? Não sei o que
se supõe que devo fazer se estou com alguém que não seja meu amo.”
Essa
garota não conhecida nada além da vida de escrava. A única relação que ela
podia conceber entre duas pessoas era a de um escravo e seu mestre. Para ser
completamente honesta, Flum não havia pensado muito ao leva-la. Em qualquer
caso, ela se sentia mal por deixa-la sozinha. Mas se a garota insistia em ter
um amo...
“Bem.
De agora em diante, eu sou sua ama. Agora virá comigo?”
A garota
a assentiu com firmeza. Isso foi tudo o que precisou?
“Primeiramente, as
apresentações. Sou Flum Apricort, tenho 16 anos. E você?”
“Meu nome é Milkit e
tenho 14 anos. Fico feliz em te conhecer, Ama.” A garota inclinou a cabeça para
baixo. Isso pegou Flum um pouco desprevenida.
“Bem, eh... Encantada
em te conhecer, Milkit.” Agarrou a mão da menina mais nova e lhe deu um leve
puxão.
Subiram as escadas e
saíram do húmido porão, buscando uma saída. O simples fato de não estar rodeado
do opressivo cheiro da morta fez maravilhas no estado de ânimo de Flum.
Rapidamente encontraram a entrada principal do edifício, mas ambas continuavam
vestidas com trapos, então Flum pegou duas capas que estavam penduradas na
porta. Depois de se vestirem, finalmente saíram.
Um curto passeio
depois, Flum se encontrou na rua onde Jean a havia vendido. As lembranças
desagradáveis voltaram a fluir e ela parou por um momento. No entanto, o olhar
frio de Milkit a impulsionou a continuar.
Partiu em direção a via
principal, tentando afastar da sua mente a lembrança de ter vindo aqui com
Jean.
Houve um aumento
massivo no trafego de pedestres uma vez que chegaram à estrada principal e, de
repente, Flum começou a se sentir melhor. O ar fresco a fez se sentir em paz...
a fez se sentir como se fosse humana de novo.
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