quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Roll Over And Die (ROAD) - Capítulo 2 - A Disfarçada Benção de Flum

 Capítulo 2:

A Disfarçada Benção de Flum    

            O comerciante de escravos levantou Flum pelo seu cabelo marrom avermelhado e deu chute após chute no estômago. “Miserável inútil! Você sabe quanto de dinheiro você me fez perder?! Por que... maldita... anã...!!”

            Flum ofegou e ofegou quando a ponta do sapato do homem acertou. Um rastro de baba saiu pelo canto da boca e desceu pelo seu queixo. Uma gota caiu sobre o sapato do homem, o que só provocou uma nova explosão de violência.

            “O que você esta fazendo atuando como a vitima disso tudo?! É culpa sua por ser tão inútil que ninguém quer te comprar!”

            O estalo abafado das botas ao chocar com a carne seguiu ressoando por toda a habitação.

            Quando o famoso herói Jean Inteige aproximou-se pela primeira vez para lhe dizer que tinha uma garota para vender, o comerciante quase se ajoelhou para agradecer aso céus nesse mesmo momento. Obviamente, obrigar uma garota inocente à escravidão era contra a lei, e para piorar as coisas, ela era um dos heróis escolhidos para derrotar o Lorde Demônio! Mas isso  também implicava que a alma desafortunada possuía algumas estatísticas bastantes impressionantes... estatísticas que seriam vendidas por uma margem muito boa no mercado aberto. Inclusive o próprio Jean havia dito que “a recompensa vale a pena o risco, eu te asseguro”.

            E assim, o comerciante fez sua devida diligência e cumpriu sua parte do acordo. Evitou fazer perguntas; não porque estivesse sendo cortês, per se, mas porque Jean lhe deu a impressão de que não devia ser feito. Em retrospecto, isso havia sido um claro sinal de que algo estava errado. Jean havia sido muito reservado com a informação e nem sequer havia tentado pechinchar mais dinheiro.

            Como pude ser tão estupido?

            A primeira vez que o comerciante começou a se preocupar foi quando viu como Jean arrastava Flum e como a desprezava. “Inútil”, ele disse para ela. Bem na frente do homem que esperava comprar essa garota a um preço exorbitante. Mas estava lidando com um lendário herói... inclusive um sábio! E por isso o comerciante havia aceitado ser termos sem reclamar.

            Foi somente depois de completar a transição e sair que o homem finalmente decidiu verificar as estatísticas de Flum. Felizmente, isso foi alcançado facilmente com o feitiço Escanear, magia simples que qualquer um poderia usar, independentemente de sua afinidade.

            Flum Apricot

            Afinidade: Reversão

            Força: 0

            Magia: 0

            Resistência: 0

            Agilidade: 0

            Percepção: 0

 

Quando ficou evidente que as estatísticas de Flum eram todas zero, o sangue desapareceu do rosto do comerciante. E nesse momento, claro, Jean já havia ido.

Em circunstâncias normais, sempre usaria Escanear antes de realizar uma compra. Agora, se deu conta de que Jean provavelmente haveria cancelado o acordo ali mesmo se houvesse tentado usar Escanear em qualquer momento da transação.

Tudo se resumia nisso: o havia enganado. Jean havia visto através dele.

Aproximadamente uma semana havia passado desde que o comerciante havia se separado tão facilmente de uma grande quantia de dinheiro para que lhe impusessem essa garota. Não importava o amargor que tivesse por todo o assunto, não era como se pudesse devolve-la, e considerando que a haviam comprado no mercado negro, uma garota com estatísticas que eram todas zero era praticamente impossível de vender.

Mas isso estava a ponto de mudar.

O comerciante agarrou Flum pela gola da camisa surrada e a arrastou pelo corredor de pedra, o áspero solo raspando na pele a medida que avançavam.

“Ay... ayyyyy...”

Ela não levantou muitas objeções a este grau de dor. Também não tinha a energia mental para tentar imaginar para onde a levavam agora. Não ia ser agradável, disso ela sabia. Poderia ser vendida a outra pessoa, ou talvez inclusive assassinada... de qualquer forma, seu futuro era sombrio. No momento em que a marcaram como escrava, Flum soube que nunca voltaria para casa.

A principio ela havia chorado, mas nesse ponto, Flum havia se rendido. Nem sequer lutou quando o comerciante a arrastou por um lance de escadas, só deixou escapar pequenos gritos de dor quando suas pernas ou coxas se chocavam contra o degrau inferior. Uma vez no porão, o comerciante abriu uma jaula e a jogou dentro antes de fechar rapidamente a porta atrás dela.

Flum bateu no chão com um estalo abafado e caiu no chão frio. “Nnnng...”

Ela se levantou e olhou ao redor da jaula. Viu a outros quatro escravos ali com ela, seus olhos apagados confirmando que todos haviam aceitado sua morte iminente. Parecia que ninguém se incomodava em alimentar essas pessoas, já que todos pareciam doentes e frágeis.

A jaula também estava suja, embora fosse esperado. Cheirava absolutamente ruim, o que fez com que o nariz de Flum se enrugasse instintivamente. Em um dos cantos havia uma mulher rodeada de suas próprias fezes e urina. Um estranho sorriso pairava no seu rosto. Seu coração ainda batia, mas por dentro, já estava morta.

De repente, escutou o comerciante falar de onde ele estava sentado em uma cadeira do lado de fora da cela.

“Bem, aqui esta enchendo rapidamente. Suponho que já é hora.”

Estava claro que algo estava a ponto de começar, mas nenhum dos mortos vivos da cela parecia mostrar interesse no era esse algo. O homem levantou da sua cadeira e afastou para começar com os preparativos. Por enquanto, o único som no porão era a respiração dos escravos.

Flum se arrastou para o fundo da habitação e apoio sua costas contra a parede. Enquanto lentamente começava a controlar sua respiração e observava o que a rodeava, seu olhou pousou em uma figura de aspecto estranho, com o corpo coberto de bandagens.

Pensou em fazer uma pequena conversa para passar o tempo. “Quanto... quanto tempo você está aqui?”

A figura se virou lentamente para Flum. Quando finalmente falou, foi para dizer: “Me trouxeram aqui faz três dias.”

Flum não havia se dado conta de que era uma garotinha até que a escutou falar. Estava tão magra que os contornos dos ossos eram visíveis logo abaixo da pele, e a bandagem envolta ao redor do seu rosto escurecia suas feições. Seu cabelo cinza claro tocava nos ombros; Flum pensou que inclusive poderia ser prateado se o lavasse bem. O comprimento do seu cabelo por si só poderia ter inclusive revelado seu gênero, mas estava rasgado, como se houvessem cortado com força com uma faca oxidada.

A roupa da garota estava suja, a pele manchada de sujeira e levava consigo um cheiro ligeiramente áspero e penetrante. E, no entanto, havia algo na forma em que olhou para os olhos de Flum que a deixou sem ar. Seus olhos eram absolutamente lindos. Flum não pôde se obrigar a desviar o olhar.

Nesses olhos, viu uma linda feminilidade e um olhar de pura inocência. Se o destino a houvesse tratada de maneira diferente, Flum estava segura de que essa garota levaria uma vida verdadeiramente feliz. Ela podia dizer isso só ao olhar seus bonitos olhos, um contraste gritante com a repugnante masmorra na que se encontravam.

            “Umm... Então... uhh... Suponho que todos os que estão aqui vão ser assassinados?”

            “Não sei, mas o amo disse que ia se desfazer de todos nós.”

            “O amo?”

            “O homem de antes. Ninguém me comprará, então isso o torna meu amo.”

            “Oh, entendo...”

            Flum se deu conta que ela e essa outra mulher haviam vivido vidas completamente diferentes. Parecia que havia sido escrava desde muito jovem e estava acostumada com isso.

            Depois de inspecionar mais de perto, Flum notou que parte da pele abaixo das bandagens da menina estava vermelha e inflamada. Estremeceu-se ao pensar no castigo que a outra mulher havia recebido nas mãos do suposto amo.

            Flum não tinha vontade de continuar sua conversa com a figura vendada, embora estivesse surpreendida do quão jovem parecia ser a outra garota. Enquanto deixava que o silêncio os envolvesse, notou que a garota a olhava fixamente por mais um tempo antes de finalmente voltar o olhar para o chão.

            As duas se sentaram ali, abraçando suas pernas contra seus peitos em busca de calor, olhando distraídos para o chão cinza. Flum viu alguns insetos que nunca antes havia visto se retorcerem ao redor da cela nas suas incontáveis patas. Em outras circunstâncias, a visão a perturbaria e haveria tentado se afastar o mais longe possível, mas agora olhava fixamente.

            Depois de um tempo indeterminado, escutou o som de passos que se aproximavam. Olhando para cima, viu o comerciante que estava do outro lado das barras. Deixou uma pequena cadeira em frente a cela e se sentou, cruzando uma perna sobre a outra.

            “Bem, bem, bem. Provavelmente já sabem, mas agora mesmo estão todos sentados em um monte de lixo. Não tem nenhum valor no mercado, e  não poço investir dinheiro para cuidar de pedaços de carne sem valor, então vou ter que acabar com vocês. No entanto...”

            O comerciante sorriu.

            “Em primeiro lugar gastei dinheiro os adquirindo e depois desperdicei ainda mais para lhes manter com vida. No mínimo, eu mereço me divertir um pouco com suas mortes, não?”

            Ninguém respondeu. Embora não parecia haver esperado que o fizessem, o comerciante ainda estalou a língua incomodado pelo silencio. Logo se pôs de pé e se afastou, desaparecendo na escuridão.

            Embora Flum não pudesse ver de onde estava sentada, aparentemente havia uma alça de algum tipo pregada na parede à frente deles. Podia escutar o metal raspando quando o homem o empurrava com ambas as mãos. A pedra raspava contra a pedra enquanto o teto rangia sobre eles, seixos e poeira choviam nos ocupantes da cela.

            Flum voltou os olhos lentamente para a fonte do som quando três objetos em forma humana caíram através do buraco recém-aberto no teto e bateram no chão com um estalo abafado.

            Na verdade, não tinha forma humana. Haviam sido humanos, uma vez. Quando estavam vivos.

            O sangue e outros fluidos escoava dos cadáveres retorcidos, enchendo a habitação com um fedor terrivelmente podre. Os insetos inicialmente se surpreenderam pelo barulho alto, mas agora correram famintos até os recém chegados.

            O comerciante apareceu mais uma vez em frente a cela com um sorriso orgulhoso no rosto. “Já descobriram? Esses são ghouls. Quando um cadáver fica tempo demais exposto à magia, começam a se mover totalmente por sua conta e se convertem em monstros Rank F.”

            Enquanto falava, os ghouls emitiram sons grotescos de gorgolejo e sucção. Estremeceram-se e ganharam vida, girando a cabeça em busca de uma presa. Os gemidos que escapavam de suas gargantas meio podres eram de outro mundo.

            Flum havia se encontrado antes com ghouls em sua viajem. Como disse o homem, esses eram monstros Rank F de baixo nível. Eram lentos e frágeis devido a sua carne podre.

            “Te direi que... se conseguir fazer dano para estes ghouls, então voltarei a te colocar a venda e te deixarei viver um pouco mais. Mas tenha cuidado. Esses caras não são presas fáceis.”

            Muitos aventureiros novatos cometeram o erro de baixar a guarda diante os ghouls de Rank F, só para serem assassinados por uma poderosa mordida no pescoço. Uma pessoa normal sem experiência em combate não tinha nenhuma possibilidade contra esses monstros, especialmente equipados com nada mais que suas próprias mãos.

            “Bem, parece que já tiveram um bom começo!”

            Os ghouls correram até a mulher coberta de fezes que estava sentada num canto, impulsionado pela fome pura e o desejo de substituir sua carne podre com a dos vivos. Abriram bem a boca, expondo seus dentes amarelos e espirrando baba no chão. A mulher nem sequer gritou. Ela simplesmente se sentou ali e olhou fixamente para os monstros que estavam vindo para rasgar sua carne.

            Um a agarrou na coxa, outro no ombro e o terceiro a mordeu na bochecha. Os ghouls mastigaram descuidadamente enquanto rasgavam a carne da mulher. Depois de um curto tempo, seu corpo começou a  convulsionar e um liquido rosa borbulhou nos cantos da sua boca. Com um ultimo puxão, sua cabeça se inclinou para o lado e seu corpo deixou de se mover.

            E, no entanto, havia algo de paz no seu rosto. Como se finalmente houvesse se livrado de toda a dor e do sofrimento que suportou vivendo nesse mundo.

            No entanto, os ghouls estavam longe de estar satisfeitos.

            Ao presenciar o assassinato da mulher diante deles, Flum e os demais na cela se deram conta de que não estavam dispostos a deixarem serem mortos, Ao menos ainda não. A garota vendado com a que Flum havia falado antes se movia fracamente, como se lutasse com a ideia da morte iminente.

            Um amplo sorriso enfeitou o rosto do comerciante. Parecia disfrutar do medo que se estendia entre os ocupantes sobreviventes da cela.

            “Será melhor que façam algo rápido, ou serão os próximos! Mas não podem derrotar um ghoul com suas próprias mãos, verdade? Oh, uau! Olha essa parede! Não isso ai uma espada? É muito pesada para qualquer um de vocês, mas quero dizer, quem sabe. Talvez é uma arma de classe épica e possui algo de magia!”

            Claro, todos sabiam que era uma armadilha. Mas, que opção tinham se queriam viver? O único homem na cela correu imediatamente até a espada e agarrou a empunhadura. Infelizmente, a enorme arma de aço era muito pesada para seus frágeis braços. Sua ponto bateu no solo de pedra com uma chuva de faíscas e um alto barulho metálico.

            O barulho chamou a atenção dos ghouls, que começaram a se mover até ele. O homem nem sequer podia levantar a espada do solo, e muito menos lutar contra eles.

            “Hah... hah... nnngraaaaw! Não vou morrer aqui! Vou sair daqui e viverei bem...” Sua voz foi se apagando enquanto continuava lutando, provocando o riso do comerciante.

            “Fico feliz em ver que você tem um pouco de senso comum! Bom para você. Só por isso, me assegurarei de que não sofra tanto.”

            O homem que empunhava a espada de repente começou a gritar.

            “Você... bastardo! Meu corpo, está... Gaaaaugh!!”

            Ao olhar mais de perto, Flum notou que a pele das costas das mãos estava descascando, expondo a carne e os ossos por baixo. E não era só suas mãos. A carne de todo o seu corpo estava começando a descascar sob suas roupas. Logo veio o musculo por baixo, que começou a derreter em um liquido espesso e pegajoso enquanto o corpo do homem cedia de sua forma.

            “Gyahahaha!! Oh, que vergonha. Sim, escolheu corretamente, mas desafortunadamente essa espada esta amaldiçoada. Qualquer um que a toque terá uma morte espantosa. Essa lâmina negra denuncia um pouco, não? A obtive de uma maneira parecida com a de Flum. Alguém me disse que era uma arma de classe épica e me enganaram para que a comprasse. Quando vou aprender. Bom, para se franco, na verdade é uma arma épica. Buahahaha!”

            O comerciante apertou as mãos e riu alto em sádico deleite.

            “Por outro lado, foi muito divertido ver como esse lixo de espada limpava o outro lixo que havia se acumulado. Suponho que não foi um desperdício total!”

            Enquanto falava, os ghouls se viraram até seu próximo alvo: a terceira garota na jaula, além de Flum e a garota vendada. A garota agitou os braços freneticamente, como se tentasse afastá-los.

            “Por que eu?? Por favor, se afaste. Por favor, se mantenham afastados de mim!”

            Isso fez que o comerciante risse ainda mais. A garota se lançou para as barras e se agarrou desesperadamente a elas enquanto enfiava o rosto na abertura.

            “Por favor me salve, eu te imploro! Farei tudo o puder para me assegurar de que alguém vai me comprar, eu prometo!”

            O comerciante respondeu a desesperada garota com um sorriso caloroso. Se levantou do seu assento e se ajoelhou diante dela, baixando a cabeça no nível dos olhos. Um raio de esperança começou a brotar no peito da garota quando viu a expressão no seu rosto. Talvez, só talvez, ainda havia um pouco de humanidade nesse homem que ganhava a vida comprando e vendendo outros humanos.

            “V-Vai me salvar?”

            “Você esta suja.”

            O olhar caloroso nunca abandonou o rosto do comerciante quando puxou uma faca e a apunhalou através do ponto suave na base da sua garganta.

            “Gnng... nnnnnhhggg...”

            A lâmina atravessou a base da língua, o nariz e o cérebro.

            “Nossa, isso cheira mal! É difícil de acreditar que outro humano possa morrer de tal forma. Embora, para ser justo, isso é um insulto para mim nos colocarmos na mesma categoria. Gahaha!”

            O corpo da garota caiu lentamente até o chão, seu rosto ainda pressionado com força contra as barras, equilibrado sobre o punho da faca. O comerciante voltou para o seu assento e olhou para a garota morta antes de soltar outro gargalhada.

            O mundo era vasto.

            Um vasto domínio, cheio de criaturas repugnantes, que rodeava o pequeno povoado de Flum. Se apenas tivesse ficado onde estava. Ela nem queria sair. Escolhida pelo Criador Divino... não, era mais como se tivesse sido amaldiçoada.

            Havia levado uma vida agradável e simples no seu povoado. Ajudava seus pais no campo todas as manhãs, e depois voltavam para disfrutar juntos de um almoço quente. Pela tarde, colhiam flores e indo a aventuras nos bosques próximos, enquanto conversaram de nada em especial enquanto o sol estava se pondo lentamente. A frágil Flum tinha que tomar descansos regulares apenas para acompanhar o resto das crianças, mas ninguém zombava dela por isso.

            Se estivesse em casa agora, seria hora do jantar. Sua família iria rir e conversaria ao redor da mesa antes de se preparar para ir para a cama, sabendo que outro dia como esse os esperaria no amanhecer.

            Como sentia saudade desses dias.

            Ela nunca quis nada e nunca havia reclamado. Todos a haviam elogiado por ser uma garota tão boa, inclusiva se não era exatamente a melhor filha que seus pais poderiam ter esperado.

            Afinal, todas as suas estatísticas estavam estancadas no zero. Mas isso era realmente tão ruim? Cada criança tinha sua própria forma de fazer a vida difícil para seus pais. Seus pais sempre haviam rido de qualquer sugestão de que ela pudesse ser um aborrecimento.

            Aquilo não estava certo.

            Não podia deixar que sua vida acabasse assim, gritando de miséria enquanto um ghoul a comia viva.

            “Não! Não, não! Não quero morrer assim!! Não fiz nada para merecer isso!!”

            Uma explosão de emoções percorreu a mente de Flum... ira, medo, ódio, terror... enquanto enfrentava os trôpegos corpos de carne podre. Eles gemeram quando finalmente se deram conta dela e se arrastaram cada vez mais para perto.

            “Não fez nada? Há! Por sua culpa terminei perdendo uma grande quantia de dinheiro! Agora, morra pelos seus pecados!”

            “Nada disso é minha culpa! Eu não faz nada disso com você!”

            A haviam vendido, escravizado e agora estava a ponto de ser assassinada. E ela devia ser responsabilizada por isso também? Não era assim que o mundo deveria funcionar. Então, por que era o comerciante que se safava? Como sua palavra se tornou a lei? Afinal, ela realmente podia acertar?

            Se isso era verdade, Flum estava condenada a morrer. Ia ser destroçada da maneira mais grotesca, reduzida a um monte de carne e ossos em um canto frio e escuro desse miserável lugar.

            Ninguém choraria por ela; não derramariam uma lágrima. Seus pais nunca saberiam o que havia acontecido. Seu corpo seria lançado em algum lugar e queimado com os outros lixos, e ninguém lembraria que alguma vez existiu uma garota chamada Flum.

            E ela odiava isso.

            “Bem, se odeia tanto a ideia de morrer, por que você não pega uma arma e luta? Gyahaha!”

            Uma arma...

            Os olhos de Flum escanearam a habitação e pousaram na espada deitada no chão. Junto com ela estavam os ossos brancos e a bagunça pegajosa que uma vez havia sido seu companheiro de cela. Se renda e deixe que te comam, ou luta e derreta. De qualquer forma ia morrer.

            Mas pelo menos com certa honra se caia lutando. Inclusive se o resultado final fosse igual, preferia morrer desse maneira do que deixar que esse homem se divertisse com sua rendição.

            Flum se obrigou a levantar com um grito. Seu corpo estava debilitado, tinha fome, e o fato de que havia passado as ultimas horas sendo o saco de boxe do comerciante também não ajudava. Mesmo caminhando com as pernas curvadas, ainda tremia com cada passo. Podia ouvir o homem cacarejando além das barras, mas apertou a mandíbula e se obrigou a avançar passo a passo.

            Nesse ritmo, os ghouls provavelmente chegariam nela antes que ela tivesse a oportunidade de por uma mão sob a espada.

            “Nng... aaaah... oooww...!”

            No entanto, continuou dizendo a si mesmo que não ia deixar que tudo terminasse assim.

            “... E, no entanto, eu persisti... e persisti... e, ainda assim, eu persisti!”

            De alguma forma, essas palavras a ajudaram a encontra a força que precisava para superar seus medos e dar o seguinte passo adiante, seus passos ficaram mais e mais largos com cada passo. Infelizmente não importa o quão forte seja sua determinação, não se pode escapar da terrível realidade da sua situação. Antes que se desse conta, um dos ghouls a agarrou no ombro com sua mão podre.

            “Ah!”

            O corpo de Flum se retorceu impotente quando o poderoso ghoul puxou ela até ele e aproximou a cabeça no seu ombro esquerdo, com a boca aberta e salivando. Um pouco depois, alguns dentes castanhos doentios morderam sua fina roupa e mergulharam profundamente na sua carne.

            “Nnngaaah!”

            O sangue se misturou com a saliva espessa e começou a brotar da sua pele onde o ghoul a havia mordido. O ghoul balançou a cabeça para frente e para trás, rasgando a carne.

            “Gaaaaaaaugh!!”

            O rosto de Flum se contorceu de dor quando uma parte do seu ombro foi arrancada. Ela caiu no chão de pedra.

            Mais adiante, viu a espada. Seu braço esquerdo era uma causa perdida, mas continuou, engatinhando tão rápido quanto suas pernas e seu braço poderiam a impulsionar.

            O comerciante torceu para ela nas laterais. “Você esta quase conseguindo, só um pouco mais!”

            A garota vendada seguiu os movimentos de Flum, seus olhos frios e sem emoções.

            Flum continuou rosnando, sua respiração entrecortada, enquanto lutava para abrir um caminho através da dor e aproximava cada vez mais da espada. No entanto, ainda se movia muito lento que antes, e o ghoul estava sobre ela de novo. Essa vez, foi a suave carne da sua panturrilha que rapidamente cedeu ao ranger de dentes.

            Outro ghoul desceu sobre ela e mordeu a coxa esquerda. O terceiro e ultimo ghoul fez sua presença conhecida quando começou a roer o calcanhar.

            Agora as pernas de Flum eram inúteis. Todo o que tinha era seu braço direito.

            Um calafrio inundou seu corpo, húmido de suor frio pela perda massiva de sangue. Seus pulmões lutavam valentemente com cada respiração para fornecer a ela oxigênio. Só permanecer consciente era uma batalha por si só. Flum estava preocupada com perder a consciente em qualquer momento pela dor.

            Sua perseverança seria sua salvadora. Seu dedo, a ponta do seu dedo do meio, tocou a empunhadura da espada. Estirou ainda mais a mão e conseguiu a agarrar firmemente.

            “Eu... consegui.”

            E agora ela podia derreter e morrer.

            Havia perdido toda a sensação nas suas pernas enquanto os ghouls continuavam se deleitando com sua carne. Todo abaixo da sua cintura agora era somente uma mistura de carne, ossos e sangue. Mas, de que importa? De qualquer forma ia morrer. Pelo menos estava fazendo isso nos seus próprios termos. Se isso era importante ou não, não conseguia dizer, mas a deixou com uma estranha sensação de satisfação.

            Flum fechou os olhos e sentiu que a dor se dissipava lentamente. Uma sensação de calor a envolveu e sentiu seu corpo leve.

            Então era assim que se sentia ao morrer.

            A voz do comerciante interrompeu seus pensamentos. “O que...?”

            Flum não se importava com o que ele tinha para dizer. Afinal, ela estava morrendo.

            “O que está acontecendo?”

            Ou pelo menos, pensou que estava.

            “O que é isso? Porque suas feridas estão se curando?!”

            Ao escutar a confusão na voz do homem, Flum finalmente decidiu abrir os olhos pela ultima vez.

            E então ela viu...

            “Eh?”

            Os ghouls estavam se afastando de Flum, mantendo uma distância estranha. Além do mais, a carne que havia sido arrancada das pernas alguns momentos antes estava de volta onde deveria estar, sem sequer um arranhão à vista. Inclusive seu ombro foi restaurado.

            Flum levou a mão no rosto e abriu e fechou algumas vezes. Ela beliscou sua bochecha. Doía.

            Então não era só sua imaginação ou um sonho cruel. Isso significava que seu corpo...

            Flum se levantou e levantou a espada com uma mão. Não era leve, de maneira nenhuma, mas também não era particularmente pesada.

            Essa frágil garota de alguma forma estava levantando uma enorme lâmina quase tão alta quanto ela com uma mão.

            Não tinha sentido para ela, mas Flum entendeu. Ela não havia se rendido. Mesmo no momento mais sombrio, se arrastou até o seu alvo e conseguiu e alcançou o que se propôs a fazer.

            “Então... não tenho que morrer?”

            Flum olhou para o seu corpo agora curado e sentiu uma nova determinação brotar dentro dela.

            “Sim, sim! Não fiz nada de errado! Não há nenhuma razão pela que devia morrer em um lugar miserável como esse.”

            Mais uma vez os ghouls começaram lenta e estranhamente se aproximar dela. Apesar da sua aparência espantosa, já não inspiravam o mesmo medo de momentos antes. Flum fechou os olhos e deixou escapar um suspiro para limpar sua mente. Ela apertou mais o punho, manteve a lâmina pronta e se lançou até os monstros.

            Afinal ela não tinha nada que temer. A lâmina era muito mais longa que o alcance dos ghouls.

            Copiando o que havia visto os membros do seu grupo fazer no passado, se aproximou até que esteve a uma distância de ataque, baixou sua espada e...

            “Hyaaaaa!!”

            Fwok!

            Os três ghouls foram todos cortados pela cintura, a metade superior dos seus corpos cortada de maneira limpa. Flum, com sua estatística de força de zero se surpreendeu ao vê-los divididos em dois tão facilmente com um só golpe. Claro, sua carne estava podre, mas isso foi impressionante. Deve haver algo especial nessa lâmina.

            Não que ela realmente se importasse com os detalhes agora. Ela estava feliz que funcionou. O que realmente importava era escapar com vida.

            Flum se aproximou até a porta da jaula e lançou outro golpe poderoso com a espada.

            Clank!

            A pesada lâmina separou facilmente a fechadura e abriu a porta com um chiado. Ao sair da cela, se encontrou cara a cara com o comerciante acovardado.

            “E-Espera um minuto! Escuta, eu, eh, você pode ir de graça, de acordo? Então, por favor, me perdoe!”

            Esse era o mesmo homem que estava rindo a pouco tempo atrás enquanto via os escravos morrendo frente a ele. Quão rápido as pessoas mudam. Ainda assim, Flum se debatia se deveria mata-lo. Nunca antes havia levantado uma mão com violência e não queria se transformar em uma assassina. E se o comerciante era uma espécie de figura influente na capital, isso poderia transformar ela numa criminosa perseguida.

            No entanto...

            “Haa... Augh?!”

            Ela passou a espada diretamente através do seu ombro direito, separando de forma limpa seu braço direito de seu corpo e fazendo que ele caísse sem forças no chão. O comerciante levou um tempo para reagir por causa da rapidez de tudo.

            “Aaaaaaguh!!! Meu... meu braço!!”

            “Cale-se, velho.”

            A seguir, lhe tirou o braço esquerdo com a lâmina encharcada de sangue. Seus gritos ressoaram por todo o porão.

            “Gryaaaaaaaaugh!!”

            Flum se surpreendeu do quão tranquila se sentiu quando infligiu tal dor a outro ser humano pela primeira vez. Foi como cortar carne. Na sua mente, o homem já não era humano.

            O comerciante continuou gritando enquanto Flum lhe cortava a perna esquerda, relembrando de todas as vezes que haviam chutado ela. Doeu. Muito. Seu torso estava coberto de contusões e todo o seu corpo doía. A única coisa que a haviam dado de comer em dias foram pedaços de pão mofado e ela mal conseguiu engolir.

            “Aaauugh! P-Por favor, só pare!”

            Sua perna direito foi a seguinte. Outro corte da lâmina revelou gordura branca no meio do músculo encharcado de sangue.           Ela podia ver até ver o fêmur espreitando. Ela não sentia nada além de ódio por esse apêndice que ele havia rapidamente transformado em uma arma, mas uma vez separado do seu corpo não era nada além de um pedaço de carne.

            “Por favor, por favor, me perdoe...” Sua voz era apenas um pouco mais do que um sussurro, provavelmente pela perda de sangue. Flum não queria que ele sangrasse antes que ela terminasse. “Eu te... eu te imploro...”

            Swish!

            Fwop!

            Ela balançou a espada paralelamente ao solo e diretamente no lado da sua cabeça, cortando a metade superior da cabeça do homem. O sangue jorrou do seu crânio cortado como uma fonte, espirrando no roto de Flum enquanto desabava lentamente até o chão. Uma mistura de sangue e  cérebro se espalhou pelo solo, e um fedor espantoso agora emanava do homem que uma teve o atrevimento de chamar ela de suja.

            Flum se manteve imperturbável diante da grotesca cena diante dela. Ela não se sentiu culpada. Na verdade, era muito parecido a quando ela matou os ghouls. Agora que ela pensava nisso, tudo o que havia feito foi matar a outro monstro que parecia um humano. Um monstro ainda mais podre que os ghouls.

            Ela sentiu uma crescente sensação de segurança. Ela tinha razão. Ela não estava louca. Sua visão de mundo acabava de mudar um pouco, graças a terrível experiência que havia suportado na semana passada.

            Pouco a pouco se deu conta de que não tinha bainha para sua espada. Ela poderia a manejar com uma mão, mas não podia simplesmente caminhar pela cidade desse modo.

            “O que fazer...?”

            Enquanto ela refletia, a espada de repente explodiu numa chuva de luz e desapareceu na palma da sua mão, deixando uma runa vermelha no seu lugar.

            “Assim é... disse que era uma arma de classe épica, como a que Cyrill usava. Ela podia fazê-la aparecer e desaparecer à vontade...”

            Havia cinco classes de equipamentos: comum, pouco comum, raro, lendário e épico. Igual às estatísticas de uma pessoa, a classe de um equipamento pode ser determinado usando Escanear. O portador de um equipamento épico poderia convoca-lo desde, e envia-lo a, uma espécie de uma dimensão paralela.

            Devido a suas altas estatísticas e o fácil que era o transportar, o equipamento Épico era ridiculamente caro... não é algo que um comerciante de escravos comum teria acesso. Como ele disse, provavelmente foi induzido a compra-lo pelo que pensou ser um roubo, graças ao fato de que estava amaldiçoado.

            Independentemente, Flum se alegrou de não que o levar pela cidade com ela. Com isso fora do caminho, voltou sua atenção para a jaula e olhou para o único ocupante vivo, a garota vendada.

            Entrou na jaula e ofereceu uma mão para a jovem.

            “Eh?” A outra garota só inclinou a cabeça confusa. A rapidez de seu movimento fez suas bandagens rangerem.

            “Eh, nada. Estamos saindo daqui.”

            “Mas por quê?”

            “O comerciante está morto. Já não há razão para estarmos aqui.”

            A jovem olhou fixamente para Flum. Seus olhos eram absolutamente lindos e, no entanto, estavam completamente desprovidos de qualquer emoção. Era impossível sequer adivinhar o que estava passando pela sua mente.

            “Escuta, será muito ruim para mim se alguém fica sabendo que eu matei o comerciante, de acordo? Agora vamos nos apressar!”

            Agora Flum estava ficando sem paciência. Agarrou a mão da garota, a colocou de pé e logo começou a leva-la para fora.

            “Umm...”

            “O que?”

            “Você agora é a minha ama?”

            Isso parou Flum em seu caminho.

            “Isso não era exatamente o que eu estava pensando...”

            “Mas você me tirou desse lugar, não? Você não vai me usar?”

            “Usar...?”

            “Se isso não é o que você pretende, então por que me levaria contigo? Não sei o que se supõe que devo fazer se estou com alguém que não seja meu amo.”

            Essa garota não conhecida nada além da vida de escrava. A única relação que ela podia conceber entre duas pessoas era a de um escravo e seu mestre. Para ser completamente honesta, Flum não havia pensado muito ao leva-la. Em qualquer caso, ela se sentia mal por deixa-la sozinha. Mas se a garota insistia em ter um amo...

            “Bem. De agora em diante, eu sou sua ama. Agora virá comigo?”

            A garota a assentiu com firmeza. Isso foi tudo o que precisou?

“Primeiramente, as apresentações. Sou Flum Apricort, tenho 16 anos. E você?”

“Meu nome é Milkit e tenho 14 anos. Fico feliz em te conhecer, Ama.” A garota inclinou a cabeça para baixo. Isso pegou Flum um pouco desprevenida.

“Bem, eh... Encantada em te conhecer, Milkit.” Agarrou a mão da menina mais nova e lhe deu um leve puxão.

Subiram as escadas e saíram do húmido porão, buscando uma saída. O simples fato de não estar rodeado do opressivo cheiro da morta fez maravilhas no estado de ânimo de Flum. Rapidamente encontraram a entrada principal do edifício, mas ambas continuavam vestidas com trapos, então Flum pegou duas capas que estavam penduradas na porta. Depois de se vestirem, finalmente saíram.

Um curto passeio depois, Flum se encontrou na rua onde Jean a havia vendido. As lembranças desagradáveis voltaram a fluir e ela parou por um momento. No entanto, o olhar frio de Milkit a impulsionou a continuar.

Partiu em direção a via principal, tentando afastar da sua mente a lembrança de ter vindo aqui com Jean.

Houve um aumento massivo no trafego de pedestres uma vez que chegaram à estrada principal e, de repente, Flum começou a se sentir melhor. O ar fresco a fez se sentir em paz... a fez se sentir como se fosse humana de novo.

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