Intermediário
1:
A
Pequena Engrenagem Danificada
Se
passaram dois dias desde que Flum foi vendida para o comerciante de escravos, e
era evidente que não apareceria na reunião marcada no porão do castelo. Uma vez
que os outros heróis se reuniram, Jean falou.
“Flum
decidiu ir para casa. Ela já não se unirá ao nosso grupo.”
Cyrill
foi à primeira em responder. Seus olhos se alargaram e olhou para Jean com
desconfiança. “O que?”
Os
outros membros do grupo pareciam na sua maioria desinteressada nesse novo
desenvolvimento. Eterna franziu a testa, Gadhio pigarreou, María baixou o olhar
e mordeu seu lábio, e Linus murmurou para si mesmo que provavelmente isso era o
melhor.
A
voz de Cyrill vacilou. “O que você sabe sobre isso, Jean?”
Jean
franziu a testa como se acabasse de morder um inseto. Havia esperado que ela
estivesse agradecida de que Flum não fosse mais membro do seu grupo. Talvez
isso tenha sido otimista de mais. De alguma forma, Flum conseguiu causar
problemas mesmo depois que ela se foi.
“Ajudei
ela a tomar uma decisão, claro. Simplesmente não tinha sentido que ela nos
acompanhasse mais e ela sabia disso. Ela decidiu ir para casa.”
“Ela
foi... por vontade própria?”
“Assim
é. Todos podem simplesmente nos esquecer dela. Para começar, não é como se ela
fosse útil. Vocês concordam comigo nisso, verdade, Cyrill?”
“S-Sim”
Jean
acreditava que fosse o par perfeito para Cyrill. Havia uma grande diferença de
idade entre os dois, Jean tinha 28 anos em comparação com seus 16, mas
considerava que a habilidade era um critério muito mais importante que a idade.
Se ela quisesse que sua linhagem sanguínea permanecesse no futuro, tinha que
ser com alguém tão magnifico como ele.
E
logo a conheceu... Cyrill Sweechka, a imagem da perfeição. Só havia um
problema: quem mais se aproximou dela não foi ele, mas sim um pedaço de lixo inútil,
sem talento e sem valor conhecido como Flum. Ambas eram garotas da mesma idade
e com antecedentes semelhantes, por isso não era de se estranhar que houvessem
encontrado pontos em comum. Ainda assim a amizade delas ofendeu o já arrogante
sendo de orgulho de Jean.
Não
restou outro remédio além de levar sua rebelde Cyrill de volta para o caminho
correto. Ele era muito bom nisso. Afinal, era seu puro talento inato e
tenacidade que o havia permitido alcançar a posição de sábio. Se jogava bem
suas cartas, seria relativamente simples que Cyrill se esquecesse de Flum e
tirasse a problemática garota da sua vista de uma só vez.
“Nesse
caso, não tem sentido fica preocupado, não?” Jean se aproximou e cercou Cyrill
com seus braços.
“Correto.” Ela assentiu
fracamente.
O restante dos membros
do grupo, enquanto isso, não pareciam pensar muito na repentina desaparição e
Flum. Uma vez lançado o feitiço de Retorno, a habitação se encheu de luz e os
seis heróis foram teletransportados de volta para seu ultimo lugar salvo.
Jean
se sentia como uma criança de novo, inquieto, cheio de energia na noite
anterior da viagem de acampamento, enquanto sua mente vagava por todas as
magnificas possibilidades que o esperava.
“Ei, Cyrill, Jean...
esperem, sim?” A irritação de Linus era clara na sua voz enquanto gritava atrás
dos seus camaradas. Afinal, já estavam no território demoníaco, e esta não era
a primeira vez que tinha os chamado.
“Oh, sinto muito,
Linus.” Cyrill parou e olhou para Linus em tom de desculpa.
Jean se aproximou e lhe
deu tapinhas nas costas, incentivando-a a seguir. “Não há nada do que se
desculpar, Cyrill. Agora que Flum se foi, não precisamos ir tão devagar.
Verdade, não é mesmo Linus?”
“Eh? Sinto que estou
repetindo as coisas aqui, Jean. Não estávamos indo devagar somente para ajudar
Flum a manter o ritmo. Agora mesmo estamos nas terras baldias, devemos nos
mover com cuidado!”
“Não há nada aqui que
possa se opor a nós!”
“Mas, e se formos
atacados por um dos Demônios Chefes, eh? Não é aconselhável agir com um pouco
de cautela?”
A mera menção dos
Demônios Chefes deixou Jean sem palavras. Até agora os heróis só haviam se
encontrado com dois destes monstros que serviam diretamente ao Lorde Demônio: o
Hematófago, Neigass e Fogo Fátuo, Tsyon. Também não tinha conseguido os
derrotar. O poder das criaturas era tão impressionante que inclusive a magia de
Jean foi de pouca utilidade contra eles. Foi o mais próximo que chegaram de
serem aniquilados.
“Você
entende, não? Precisamos reduzir a velocidade.”
“Hmph.”
Jean
não teve outra escolha além de aceitar. Ele estava esperando que a viagem
acelerasse com Flum fora do caminho, mas aparentemente, ele era o único que via
dessa maneira.
Cyrill,
por outro lado, olhou ansiosamente ao seu redor com um olha de preocupação no
seu rosto. Estava pensando em Flum... em todas as coisas horríveis que havia
dito e como havia ferido a outra garota. E agora seus caminho haviam se
separado. Embora já não tivesse o direto de chamar a si mesma de amiga, ainda
considerava Flum uma aliada e camarada. Cyrill, que havia crescido em um
povoado pacifico longe do front, nunca poderia ter resistido a pressão de ser
um herói escolhido sem a alegre companhia de Flum.
Ainda
assim...
“Realmente
fui ingrata.”
Infelizmente,
não importava o quanto se lamentasse, não faria que Flum voltasse. Tudo o que
podia fazer era acabar com o Lorde Demônio e salvar o mundo.
O
restante do grupo se deu conta da mudança de conduta de Cyrill. Agora que Jean
havia sido completamente advertido, Linus voltou com María e deixou escapar um
profundo suspiro.
“Algo está errado”
“O que aconteceu Linus?
Não é comum você estar tão mal consigo mesmo.”
“Não sei, é só que...
todo o ambiente, eu suponho? Honestamente, fui bastante duro com Flum, e agora
que ela se foi, o grupo parece um pouco sem vida.” O estado de ânimo do grupo
era certamente muito mais alegre quando ela estava perto. Claro, Jean sempre estava
de mau humor, mas ele era assim independentemente se Flum estava perto ou não.
“E você María?”
“Eu? Bem...” María
vacilou por um momento enquanto Linus olhava intensamente para ela.
“Você também se sente
assim?”
“Eu... eu acho que
sim.”
“Estranho, não? Você e
eu nem sequer interagimos muito com Flum.”
“No entanto, Cyrill e
eu conversamos muito. A principio sobre nossas viagens, Flum era tudo do que
ela falava.”
“Entendo. Quando Cyrill
esta desanimada tem um grande efeito na moral do grupo.”
Apesar de ser jovem,
Cyrill era sem duvida a força principal do grupo. Sem ela, enfrentar os Demônios Chefes seria
quase impossível, para não falar do Lorde Demônio.
“Isso pode ser um pouco
fora do lugar para dizer na frente de um seguidor de Origem como você, mas...”
María sorriu diante da
tentativa de Linus de parecer moderado e sofisticado. “Por favor, diga tudo o
que você pensa. Sou muito consciente da sua falta de sutileza.”
“Não estou seguro se
isso é reconfortante, mas... bom. De qualquer maneira, quando escutei que todas
as estatísticas de Flum eram zero, me perguntava se talvez o Criador Divino
havia cometido algum erro.”
O sorriso refinado no
belo rosto de María fez que o coração de Linus acelerasse. Desde o cabelo loiro
até sua pele pálida, e inclusive a forma aristocrática que falava e se
comportava, María era a mulher dos seus sonhos.
“Origem não comete
erros.” Disse María.
“S-Sim, claro. Ela
ainda possuía um papel importante no grupo. No entanto, suponho que não seria
correto tentar faze-la ficar.”
Afinal, era muito tarde
para pedir a ela que voltasse. Provavelmente não só deixaria Jean com um humor
ainda pior, mas também Linus tinha um pé atrás quanto a colocar a pobre garota
em perigo de novo depois que ela escolheu ir embora. Teriam que viver sem isso.
María falou em voz
baixa com firmeza. “Isso mesmo Linus. Foi dado as nós o honrável dever de
livrar o mundo desses demônios, devemos levar nossa tarefa até a o final, sem
se importar com o custo.”
Linus não estava muito
convencido. Realmente sentia, no fundo do seu coração, que era seu dever solene
salvar o mundo? Ou havia algo escuro e amorfo no interior, nublando esse seu
puro coração?
Teria
a resposta uma vez que a batalha tiver seguido seu curso e a poeira tiver
abaixado. Por enquanto, Linus sabia que estava viajando por um caminho no qual
nunca havia estado antes.
Normalmente
Flum estava encargada da preparação das comidas. Agora que ela se foi, Gadhio
havia assumido. Não era somente um aventureiro de Rank S, mas também tinha a
maior experiência vivendo da terra.
“Tenham
algo em mente, não faço promessas sobre como é o gosto.” Gadhio falou com
modéstia enquanto servia porções de carne de um monstro que haviam matado no
começo do dia. Não era muito em comparação com que Flum fazia, mas tinha um
gosto bom.
Enquanto
o restante do grupo disfrutava da comida, Jean franziu a testa. A carne de
monstro costumava ter um cheiro terroso bastante único. Isso poderia ser coberto
com o uso de ervas e especiaria, mas isso só servia os azarados a ponto de
serem especialmente sensíveis ao cheiro.
“Não
há nada que você possa fazer com o cheiro, Gadhio? Costumava ser muito mais...
saboroso.”
“Ei,
isso é o melhor que eu posso fazer.”
“Então
está dizendo que Flum poderia fazer melhor, mas isso é demais para um
aventureiro de Rank S como você?”
A
expressão de Gadhio se manteve igual, apesar das dores de Jean, embora isso
pareceu incomodar a Eterna. Gadhio respondeu: “Isso é porque ela faria toda a
preparação antes da hora pelo bem de uma pequena pessoa que não podia suportar
o cheiro.”
“A...
haha... sim, bom, isso não era realmente necessário.” Jean estava claramente
desconcertado, mas tentou manter as aparências dando uma mordida massiva na
carne. A expressão no seu rosto disse tudo enquanto ele se obrigava a engolir a
comida. Gadhio simplesmente suspirou e voltou para sua própria comida.
Depois dessa conversa, o silencio caiu sobre o grupo
enquanto continuavam comendo, o único som era da crepitação do fogo. Estava
muito diferente de quando Flum havia estado presente, já que sempre trabalhava
duro para manter a conversa e preenchia habilmente qualquer silêncio
constrangedor.
Depois
de jantar, sempre que não houvesse ataques repentinos, geralmente o grupo se
dividia para ter um momento privado antes de ir para a cama. Cyrill, Linus e
Gadhio trabalhavam na suas armas, enquanto María rezava para Origem e Eterna
meditava. Jean costumava passar as tardes tomando uma xícara de chá de ervas
doce enquanto lia um livro mágico. No entanto, como Flum não estava, não havia
ninguém que lhe preparasse o chá.
Sem
outras opções, buscou nas suas bolsas os ingredientes e começou a preparar ele
mesmo. Tendo vivido a vida de um mago talentoso que logo passou a trabalhar em
um instituto de investigação real, apenas estava acostumado a fazer seu próprio
chá. Para piorar as coisas, não tinha nem ideia de como faze-lo.
Depois
de ver Jean lutar durante algum tempo, Linus finalmente se aproximou. “Eh.
Então há algo que o grande e poderoso Jean não pode fazer.”
“Cala
a boca. Essa não é uma tarefa que eu normalmente faça por minha conta.”
“Vocês,
os caras esnobes, são realmente um mundo à parte, hein? Olha, me dê aqui e
farei um pouco de chá para você.”
Isso
serviu como um grande aborrecimento para Jean. Ele, o maior mago de todo o
reino, tinha que ter alguém que lhe ajudasse a completar uma tarefa que
inclusive Flum podia fazer sem ajuda. Ele acariciou seu antebraço com
impaciência, com os braços cruzados, enquanto observava Linus fazer seu
trabalho.
“Aqui,
pegue.”
Jean
pegou a xicara de chá ainda húmida de Linus, tomou um gole impaciente... e imediatamente
o cuspiu. “Tem que ver, isso é repugnante.”
“Que
diabos? Eu me dou ao trabalho de fazer chá para você, e você vai ser um idiota
com isso? Eu fiz de maneira completamente normal!”
Jean
deixou que toda a frustação que havia estado acumulando desde a janta
explodisse em Linus. “O que você espera que eu faça? Foi repugnante e amargo.
Inclusive cheira mal! Como você conseguiu que tivesse um sabor tão ruim?”
Linus
achou isso nada mais nada menos que um absurdo. O único crime que havia
cometido foi preparar uma xicara de chá. Claro, entendia que Jean possui
padrões altos, mas isso era pedir demais.
“Você
consegue fazer algo bom? Inclusive fazer comido decente parece de mais para
vocês.” Grunhiu Jean.
Isso
foi a gota d’água, Linus atacou, a
ponto de agarrar Jean quando Eterna se uniu aos dois homem. Sua voz era
tranquila e plena, como si nada fora do comum estivesse acontecendo.
“Aposto
que Flum o fazia especial para o nosso pequeno príncipe mimado.”
Com
isso, retrocedeu, deixando para trás os dois homens. Jean se enfureceu diante o
seu comentário.
“Nnngrah!
Flum isso, Flum aquilo! Por que diabos tudo é sobre esse pedaço inútil de...?
Gag!”
Jogou
a xicara de chá no chão, enviando fragmentos de porcelana branca por todas as
partes e espirrando o liquido agora morno para os pés de Linus. Logo ele saiu
furioso, sem tentar se desculpar pelo sua explosão.
“E-Espera,
Jean!”
Linus
o chamou, mas ele não o escutou ou estava muito irritado para se importar. Sem
mais nada o que fazer, se ajoelhou para varrer os pedaços da xicara de chá
quebrada, murmurando para si mesmo enquanto o fazia.
“Essa
era uma xicara realmente bonita. No entanto, provavelmente nada fora do comum
para alguém como Jean.”
Uma
vez que reuniu a porcelana quebrada, Linus enxugou a perna da calça e parou
junto ao fogo para deixar que secasse. Enquanto olhava distraidamente as chamas
dançantes, uma tristeza indescritível se apoderou dele.
Linus
era um aventureiro de Rank S, como Gadhio, mas só tinha 24 anos. Desde que era
uma criança, sempre havia sido mais talentoso que seus companheiros, e mesmo
nessa idade, teve experiências com mais do que algumas pessoas no dobro do
tempo. Atualmente, sua intuição afinada estava fazendo soar um sinal de
advertência.
As
razões mais comuns pelas quais os grupos se desfaziam não eram pelos ataques
dos monstros ou problemas de dinheiro. Eram pelas relações interpessoais.
“Só
espero que não aconteça nada realmente terrível antes que cheguemos ao castelo
do Lorde Demônio.”
Inclusive
quando Linus desejava isso com todas as suas forças, sua ampla experiência lhe
dizia que era pouco provável que as coisas acontecessem a seu favor.
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